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Bloco questiona Governo sobre central fotovoltaica do Cercal

Assunto: Projeto da central fotovoltaica do Cercal e linha de muito alta tensão, em Santiago do Cacém

Destinatário: Ministro do Ambiente e da Ação Climática

Exmo. Senhor Presidente da Assembleia da República
O projeto da central fotovoltaica do Cercal e da respetiva linha de muito alta tensão, no concelho de Santiago do Cacém, prevê a instalação de mais de meio milhão de painéis fotovoltaicos (553 722) numa área total de 323 hectares, segundo o estudo de impacte ambiental apresentado pelo proponente – a empresa Cercal Power SA, do grupo Aquila Capital, sediado em Hamburgo. A linha de muito alta tensão ligará a central até à subestação da REN em Sines, num percurso de cerca de 26 quilómetros.

Inicialmente, o projeto antecipava a instalação de cinco centrais fotovoltaicas, distribuídas por diferentes localidades – Alvalade, Borreiro, Cercal, Freixo e Vale das Éguas –, mas o projeto atual relocaliza-as, juntando-as num único local, a apenas um quilómetro de Cercal. Com uma vida útil estimada de 30 anos, a central terá afetos apenas quatro postos de trabalho permanentes.

Extensas áreas de solos produtivos para culturas agrícolas e pastoreio ficarão inutilizadas para dar lugar à central fotovoltaica. Prevê-se que a movimentação de terras, a abertura de acessos e a construção e montagem de infraestrutura durante os 12 meses previstos para a instalação da central provoque ruído e a emissão de poeiras e gases poluentes, resultando na perda de qualidade de vida da população local.

Os impactes ambientais negativos serão consideráveis nas diferentes fases do projeto. Durante a construção da central, a movimentação de máquinas e a abertura de acessos conduzirá à compactação do solo, diminuindo a área de infiltração das águas da precipitação, o que reduzirá a recarga do sistema hidrogeológico local. Também a desflorestação, desmatamento e decapagem provocarão impactes negativos nos solos, habitats e flora, favorecendo o processo erosivo e danificando ecossistemas ribeirinhos e áreas de montado, o que levará à perda de biodiversidade.

A destruição de uma área extensa de culturas arvenses afetará a avifauna estepária que nidifica em espaços abertos, como o alcaravão (Burhinus oedicnemus), o tartaranhão-caçador (Cyrcus pygargus) e o noitibó-de-nuca-vermelha (Caprimulgus ruficollis). Mamíferos, répteis e anfíbios serão previsivelmente mortos por atropelamento ou soterramento, ou excluídos da área a intervencionar fruto da perda de habitat, devido à desmatação e circulação contínua de veículos, máquinas e pessoas para a construção de estruturas e acessos.

A instalação dos painéis e a construção da subestação e de 22 quilómetros de novos caminhos provocarão a artificialização de solos e da paisagem, impactes negativos classificados pelo estudo de impacte ambiental de magnitude «moderada a elevada», significativos, permanentes e não minimizáveis. O estudo sinaliza ainda o abate de “368 sobreiros jovens sãos” para a construção da central.

A perda de habitat contribuirá para o afastamento de espécies da avifauna com estatuto de conservação desfavorável em Portugal, como a águia-de-bonelli (Aquila fasciata), o tartaranhão-caçador (Cyrcus pygargus) ou o milhafre-real (Milvus milvus). Também as espécies de aves aquáticas serão previsivelmente afetadas, uma vez que a colisão com painéis tenderá a ocorrer: pensa-se que estas aves confundem as manchas de painéis com espelhos de água. A presença da linha de muito alta tensão aumentará também o risco de colisão de aves, algumas das quais pertencentes a espécies criticamente ameaçadas que ocorrem na região, como o tartaranhão-azulado (Circus cyaneus).

A instalação de mais de meio milhão de painéis e estruturas associadas resultará na perda acentuada da qualidade paisagística do local, tornando a região menos atrativa para quem ali mora e para potenciais visitantes. A atividade turística que tem dinamizado a economia local nos últimos anos será perturbada pela existência da central.

Apesar da profunda alteração da paisagem, dos impactes negativos no ambiente e na qualidade de vida da população local, bem como na previsível transformação da base económica de muitos dos que vivem e trabalham na região, os residentes do Cercal do Alentejo apenas souberam da realização de uma sessão de esclarecimento organizada pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) um dia útil antes do fim do período de consulta pública do projeto. Importa conhecer os motivos que levaram APA a escolher esta data tardia e saber se este evento foi apenas uma mera formalidade ou se as preocupações transmitidas pelas pessoas na sessão pública serão tidas em consideração.

Na edição do jornal Público de 28 de junho, o presidente da Câmara Municipal de Santiago do Cacém, Álvaro Beijinha, disse estar a ser “pressionado” para viabilizar mais centrais fotovoltaicas no município que fornecerão energia ao programa de hidrogénio verde que o governo quer criar em Sines. O autarca afirmou que a opção pela produção de energia solar no município “foi muito repentina” e que o “governo não criou regras” que coordenassem a instalação das centrais. Adiantou ainda que existem “intenções de investimento que, globalmente, podem cobrir até sete mil hectares de painéis solares.”

O Bloco de Esquerda não tem dúvidas sobre a importância da produção de energia solar fotovoltaica para a descarbonização do país e para o combate à crise climática. Mas não podem ser delapidadas vastas áreas do território onde existem solos produtivos para a agricultura e pastoreio extensivos, e que albergam importantes habitats para a fauna e flora que urge preservar para inverter a acelerada perda de biodiversidade no país.

A aposta do governo na produção de energia solar centralizada carece de planeamento estratégico. Não existe uma avaliação ambiental estratégica para a produção centralizada. Não foi pensado o zonamento, não são conhecidos os impactes cumulativos no território nem os critérios a que deve obedecer a instalação de megacentrais solares.
A produção de energia solar centralizada deve responder ao interesse público, sujeitar-se a rigorosos critérios ambientais, sociais e económicos, e materializar-se sobre zonas improdutivas onde os impactes negativos são reduzidos. Além disso, existem alternativas viáveis para a produção solar fotovoltaica, em regime descentralizado, nas coberturas de edifícios e outras zonas desaproveitadas, que o governo deve incentivar.

Atendendo ao exposto, e ao abrigo das disposições constitucionais e regimentais aplicáveis, o Grupo Parlamentar do Bloco de Esquerda vem por este meio dirigir ao Governo, através do Ministro do Ambiente e da Ação Climática, as seguintes perguntas:

1. A área de implantação do projeto da central fotovoltaica do Cercal e da respetiva linha de muito alta tensão (LMAT) abrangem parcelas sujeitas a servidões administrativas e/ou restrições de utilidade pública?
1.1. Se sim, quais?
2. Considera o governo que o projeto da central fotovoltaica do Cercal e da respetiva LMAT é compatível com a preservação dos habitats e das populações de espécies que ocorrem na região?
3. Como avalia o governo os impactes negativos do projeto nas áreas de pastoreio extensivo e culturas agrícolas tradicionais, bem como na atividade turística que tem dinamizado a economia local?
4. Como justifica o governo que a APA tenha organizado uma sessão de esclarecimento pública um dia útil antes de terminar o período de consulta pública do projeto?
5. Vai o governo ter em consideração as preocupações transmitidas pelas pessoas presentes na sessão de esclarecimento pública? Como?
6. Vai o governo colocar à disposição da população local instrumentos de participação pública inclusivos, de fácil acesso e compreensão, sobre o projeto da central fotovoltaica do Cercal e da respetiva LMAT?
6.1. Se sim, quais e quando?
6.2. Se não, porquê?
7. Considera o governo que o projeto da central fotovoltaica do Cercal e da respetiva LMAT traz benefícios para a população local?
7.1. Se sim, quais?
8. Que destino será dado aos painéis, bem como a outros equipamentos e infraestruturas da central depois de terminado o seu tempo de vida útil?
9. Vai o governo avaliar, no território municipal de Santiago do Cacém, os efeitos cumulativos da produção solar centralizada em grandes parques de painéis fotovoltaicos?
10. Pretende o governo realizar uma avaliação ambiental estratégica para a produção centralizada de energia solar fotovoltaica?
10.1. Se sim, pondera o governo condicionar à sua definição a autorização de novas megacentrais solares?
11. Até à data, que medidas tomou o governo para aumentar a produção solar descentralizada em coberturas de edifícios e outras zonas desaproveitadas?

Assembleia da República, 1 de julho de 2021

Os deputados e as deputadas,

Jorge Costa,
Nelson Peralta,
Maria Manuel Rola,
José Maria Cardoso,
Joana Mortágua,
Diana Santos